Um texto divulgado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) apresenta propostas para enfrentar o subfinanciamento da saúde pública. O documento tem como objetivo mobilizar a sociedade para o debate sobre o montante, a fonte e o destino dos recursos, bem como do projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2016, a ser encaminhado pela presidenta Dilma Rousseff, na segunda-feira (31) de agosto, ao Congresso Nacional.
O CNS faz um diagnóstico da situação do financiamento da saúde, propõe avanços nas possibilidades fontes de custeio, no texto aprovado na reunião plenária de 5 de agosto de 2015
Veja o texto na íntegra:
A contribuição que o SUS precisa
Desde a Constituição Federal de 1988, o SUS tem vivido um processo de “asfixia financeira”, resultado da combinação de descumprimento dos dispositivos constitucionais que previam a construção de um Sistema de Seguridade Social abrangendo a Saúde, a Previdência e a Assistência Social, com mudanças destes mesmos dispositivos que não atendem aos anseios da população.
O subfinanciamento crônico do SUS tem sido um dos principais fatores que impedem o pleno cumprimento do princípio de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” estabelecido na Constituição Federal. Além de comprometer a oferta suficiente de serviços de saúde de boa qualidade, o subfinanciamento restringe a possibilidade desta política social, contribuir tanto para a redução do quadro de exclusão social, como para a promoção de um desenvolvimento regional que, de um lado, reduza as desigualdades socioeconômicas ainda vigentes no Brasil e, de outro lado, contribua para dinamizar a economia nacional. A relevância dos gastos públicos em saúde guarda relação direta com o seu caráter redistributivo, contribuindo para enfrentar as desigualdades sociais.
O processo de subfinanciamento do SUS foi agravado com as recentes medidas de ajuste fiscal anunciadas pela área econômica do governo federal, que impuseram um contingenciamento de R$ 12,9 bilhões ao Ministério da Saúde. Aliado ao aumento da taxa de juros, a gravidade deste ajuste é que ele aprofunda a recessão econômica em curso, considerando as medidas anteriormente adotadas de restrição ao crédito, com efeitos negativos não somente sobre as receitas da União, mas também do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, ou seja, prejudicando o financiamento do SUS com recursos próprios das esferas subnacionais de governo, justamente as que tiveram aumentada a sua participação proporcional no financiamento do SUS em comparação à queda da União.
Diante da lógica histórica da alocação de recursos federais para o SUS em que a aplicação máxima deve corresponder ao parâmetro da aplicação mínima (lógica conhecida como PISO=TETO), o novo critério de cálculo estabelecido pela Emenda Constitucional nº 86/2015 (EC 86/2015), cuja base de cálculo é a Receita Corrente Líquida, com escalonamento progressivo de percentuais até 2020 (de 13,2% a 15,0%), representará uma redução orçamentária e financeira para o SUS. Basta comparar o seguinte: o orçamento da saúde para 2014 representou 14,38% da Receita Corrente Líquida do ano, ou seja, é maior do que o previsto (13,2%) para o primeiro escalonamento da EC 86/2015. A redução de recursos projetada poderá superar R$ 9,0 bilhões em 2016, se a lógica PISO=TETO for mantida, em comparação à regra de cálculo vigente até o final de 2015, baseada na variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB), sobre o valor empenhado.
Além desta perda decorrente da mudança da regra de cálculo da aplicação mínima federal, a nova definição constitucional para a execução orçamentária e financeira das emendas parlamentares individuais, conhecida como emendas impositivas, provavelmente diminuirá os recursos federais para a saúde pactuados entre União, Estados e Municípios. As emendas impositivas passam a corresponder a 0,6% das receitas correntes líquidas, ou seja, representarão a partir de 2015 um adicional de R$ 2,5 bilhões a R$ 3,0 bilhões destas despesas, em comparação à média histórica de cerca de R$ 1,0 bilhão, verificada entre 2009 - 2013. Há ainda um grande risco de que esta regra inspire alterações nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas Municipais, deteriorando ainda mais as condições de financiamento do SUS nas esferas subnacionais.
Ainda na esfera federal, a falta da compensação dos valores dos restos a pagar cancelados nos exercícios de 2012 e 2013 representou uma perda de recursos para o SUS no valor de R$ 2,5 bilhões, em descumprimento ao que determina a Lei Complementar nº 141/2012.
Somados todos os efeitos negativos, temos como resultado o agravamento do subfinanciamento das ações e serviços de saúde, que em 2014, correspondeu a 3,9% do PIB, em contraposição aos parâmetros internacionais de 7,0% do PIB em gasto público em saúde, patamar no qual se reconhece que os sistemas de saúde, além de públicos, passam a cumprir função positiva na redução de desigualdades sociais.
Acrescente-se que o gasto privado em saúde soma cerca de 5% do PIB e beneficia apenas um quarto da população brasileira, composto por pessoas com melhores condições econômicas. Neste sentido, é injusto que os planos privados de saúde ainda recebam subsídios públicos por meio da renúncia ou de incentivos fiscais. São recursos que deixam de financiar o SUS em favor do setor privado que, recentemente, foi favorecido mais uma vez com a permissão da entrada de capital estrangeiro na assistência à saúde.
Em 2013, o Movimento Saúde+10, coordenado pelo Conselho Nacional de Saúde, mobilizou e unificou a luta da sociedade brasileira em prol da ampliação do financiamento de um sistema público e de qualidade na atenção à saúde, reunindo mais de 2,2 milhões de assinaturas para a apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular (PLC 321/2013) com a proposta da alocação mínima de 10% das Receitas Correntes Brutas para o orçamento federal do SUS.
A defesa dos 10% das Receitas Correntes Brutas (ou 19,3% em termos de receitas correntes líquidas) como parâmetro da aplicação mínima em ações e serviços públicos de saúde representa a continuidade da luta histórica pelo fortalecimento do financiamento do SUS.
Aqui vale lembrar os princípios constitucionais da vedação de retrocesso e de proteção insuficiente. Para que não sejam desrespeitados, as leis do ciclo orçamentário não podem prever recursos proporcionalmente menores para as ações e os serviços públicos de saúde do que os que foram aplicados em 2014, com base em regra de transição (art. 2º da EC 86/2015) que, direta ou indiretamente, não respeite o art. 60, § 4º, I e IV da Constituição Federal de 1988.
Nesse cenário, o Conselho Nacional de Saúde assume a responsabilidade em denunciar os enormes prejuízos para a assistência à saúde da população decorrentes da aprovação da EC 86/2015 e propõe os seguintes eixos de luta pelo financiamento adequado do SUS:
1) Rejeição da atual política econômica que está provocando recessão e desemprego e a consequente mudança da orientação desta política para a promoção do crescimento e distribuição da renda, inclusive com a eliminação do contingenciamento orçamentário limitador da execução dos gastos sociais;
2) Enfrentamento da dívida pública federal que restringe a capacidade de financiamento das políticas sociais (somente em 2014, os valores de juros, amortização e refinanciamento da dívida pública federal foram de R$ 170,6 bilhões, R$ 191,7 bilhões e R$ 616,8 bilhões, respectivamente);
3) Recomposição do orçamento de 2015 do Ministério da Saúde, denunciando tanto os efeitos deletérios sobre a assistência à saúde do corte de R$ 11,7 bilhões, como a não compensação prevista pela Lei Complementar nº 141/2012 dos Restos a Pagar cancelados em 2012 e 2013, equivalente ao total de R$ 2,5 bilhões (em valores nominais), que deveriam ter sido gastos adicionalmente ao valor da aplicação mínima até o final de 2014;
4) Combate a qualquer redução no orçamento do Ministério da Saúde nos próximos anos, acompanhando a tramitação das leis orçamentárias para que não seja desrespeitado o princípio da vedação de retrocesso, a exemplo do §8º do art. 35 incluído no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias/2016 pela Comissão Mista de Orçamentos do Congresso[1]1, estabelecendo que, em 2016, o valor da aplicação mínima em Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) “...não poderá ser inferior ao valor resultante da aplicação da regra constante do art. 5° da Lei Complementar n° 141, de 2012”;
5) Exclusão imediata da DRU (Desvinculação das Receitas da União) por se tratar de fonte indispensável para o financiamento da seguridade social, modificando a PEC 87/2015 que prorroga esta desvinculação até 2023 e aumenta de 20% para 30% a retenção da receita arrecadada pertencente ao Orçamento da Seguridade Social;
6) Retomada da mobilização social do Movimento Saúde+10, para alterar a EC 86/2015, principalmente no que se refere:=
6.1) Ao percentual de aplicação mínima, estabelecendo o equivalente das 10% das Receitas Correntes Brutas para apurar o valor da aplicação mínima em ASPS;
6.2) À aplicação dos recursos do Pré-Sal, retomando condição de adicional ao valor da aplicação mínima em ASPS nos termos disciplinados originalmente pelo art. 4º, da Lei 12.858/2013;
6.3) À execução orçamentária obrigatória das emendas parlamentares individuais, retirando estas despesas do cômputo da aplicação mínima em ASPS;
7) Revisão geral da renúncia de receita ou dos gastos tributários da União, especialmente os subsídios públicos aos planos e seguros privados de saúde;
8) Revisão da Lei de Responsabilidade Fiscal em relação à limitação dos gastos de pessoal vinculados às ASPS;
9) Revisão da política de patentes relacionada aos insumos e produtos da área da saúde, fortalecendo os interesses nacionais e da saúde pública; e
10) Revisão do orçamento nacional da saúde, seja pela alteração de tributos já incorporados ao Orçamento da Seguridade Social, seja pela inclusão de novas fontes, sempre sob os princípios básicos que:
a) Sejam exclusivas para o SUS e prioritariamente para as ações e serviços de natureza pública, sem aprofundar o caráter regressivo da tributação vigente no Brasil, mas suficientes para assegurar a responsabilidade pública com a saúde;
b) Tenham previamente definidas a destinação destes recursos para a mudança do modelo de atenção, para que a atenção primária seja a ordenadora do cuidado, e para a valorização dos servidores públicos da saúde.
c) Novas fontes poderiam envolver: (i) a ampliação da alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para instituições financeiras dos atuais 9% para 18%; (ii) a criação de uma contribuição sobre as grandes transações financeiras (CGTF) e a tributação das remessas de lucros e dividendos realizadas pelas empresas multinacionais, atualmente isentas, com destinação para a Seguridade Social; (iii) a aprovação da taxação sobre grandes fortunas com destinação para a Seguridade Social em tramitação na Câmara Federal; (iv) a revisão do DPVAT para ampliar a destinação de recursos ao SUS; e (v) a elevação da taxação sobre os produtos derivados de tabaco, sobre as bebidas alcoólicas e sobre as empresas que importam, fabricam e montam motocicletas.
Nesse período de realização da 15ª Conferência Nacional de Saúde, desde sua etapa municipal até a nacional, passando pela etapa estadual, o Conselho Nacional de Saúde convoca, mais uma vez, as brasileiras e os brasileiros - instituições, movimentos sociais e profissionais de saúde - para nos unirmos na construção de uma agenda estruturante da saúde no país, em defesa do SUS universal e igualitário, participando dos debates e engajando-se na luta pelo fim do subfinanciamento.
Fonte: CNS